Hoje quando retornava da academia cruzei com um rapaz que vestia uma camiseta preta com um desenho branco rebuscado onde embaixo se lia “Dostoiévski reader”.
[19:39, 16/09/2024] Virginia Portugal: Qual é sua intenção ao vestir essa camiseta?
A tradução seria?
1. Eu pertenço a um grupo de contestadores;
2. Eu pertenço ao exclusivo clã daqueles que lêem Dostoiévski em língua estrangeira;
3. Eu procuro uma namorada intelectual;
4. Eu pertenço a um grupo de elite de leitores de clássicos russos;
5. Eu quero causar, para quem sabe quem é Dostoiévski e fala inglês.
Algo que é muito claro para nós, nesta jornada de vida, é que buscamos sempre nos conectar com o outro. Queremos um olhar, uma aprovação, um elogio, a certeza de pertencer a um grupo.
E quando alguém próximo por laço sanguíneo ou outro tipo de ligação não responde a essa necessidade inerente à experiência humana?
Alguns portadores do Transtorno do Espectro Autista não são capazes de se ligar afetivamente nem mesmo a quem lhes dá suporte na sobrevivência, o que torna a relação exaustiva, pois é como se as ações do ajudante se destinassem ao vazio e apenas se ligasse ao corpo físico e não às demais nuances humanas daquele ser. E a ajuda necessária é, na maior parte das vezes intensa, ou por descontrole urinário, por não obedecer o ciclo circadiano de sono ou por não ter capacidade de se movimentar de forma autônoma.
Somos seres complexos carregados de sentimentos e emoções e a resposta do outro funciona como nosso balizamento.
Mesmo que nosso amadurecimento emocional nos permita a segurança de viver o que precisa ser vivido é no afeto que nossas baterias são recarregadas.
É o olhar de admiração, que aquele que se mostra publicamente como leitor de Dostoiévski, procura, que lhe dá força para ler o próximo livro, para executar a próxima tarefa, para viver o dia seguinte.
É a confiança de que somos amados que nos dá força para seguir em frente, crescendo evoluindo procurando novos amigos e novas relações.
É o conforto do pertencimento ao grupo de base que nos permite ir mais longe, até mesmo rompendo com ele, mas é, e sempre será, a referência.
Não há mergulho profundo sem trampolim.
A família é o trampolim, o grupo de leitores de Dostoiévski é trampolim, e para os portadores do TEA, talvez não haja necessidade de trampolim mas a rotina, a repetição, o conhecido dá segurança.
Descreve Dostoiévski, o príncipe russo Míchkin, personagem principal d’O Idiota, que dissocia-se da realidade inúmeras vezes, “o príncipe parece ser um poço de contradições ou, sendo mais gentil com ele, um mar de nuances. Ao mesmo tempo em que em alguns momentos parece não ter a mínima percepção das más intenções e hostilidades dos outros e mesmo as insinuações de uma mulher apaixonada, em outros momentos é capaz de perscrutar os pensamentos de outra pessoa, o que geralmente expressa com uma sinceridade cortante.”
E assim pertencemos tentando parecer normais.
Que possamos acolher nossas dissociações com amor e generosidade reconhecendo nossos grupos de Pertencimento e desenvolvendo a capacidade de romper com eles.
Romper com eles honrando-os e com amor.